segunda-feira, outubro 20, 2003

Reflexão

Da minha penumbra, tento devendar o porquê das coisas.
Perplexo.
Em instantes, o meu vazio incólume transfigurara-se e eu já não sabia quem era. E que vontade de descobrir, que sonho poder ver tudo pela primeira vez, como se tivesse renascido.

Em última instância, o meu eu racional reorganiza as cinzas da memória que já não o era, quase toda ela incinerada num último esforço de iluminar o meu ermo. E num ápice constrói-se de novo o meu bilhete para o real. Leio-o. Demorará a tornar-se completo, mas também nunca o foi e só o será quando eu morrer.

Mas ele fala. E já diz alguma coisa. Fala de ti. E de ti. E também de ti, mãe. Fala daquela tarde em que ele tocava guitarra e eu estava agarrado a ti. A chávena de chá fervia. Fala também de ti, e daquele livro, oh meu Deus, aquele livro!! Fala daquele momento. Fala daquele golo. Fala daquela nota. Fala daquele teste. Daquela rosa. E daquela criança que sonhámos que era nossa.

Não. Minto. Mas fala de vocês. Fala de ti, de ti, de ti, de ti que já não me vês daqui de baixo mas que espreitas lá de cima, e também de ti, mãe. Fala de vocês todos. Vocês que me fazem querer rasgar estas trevas, juntar-vos todos e dizer-vos o quanto é bom conhecer-vos. Agarrar-vos com força, lembrar tudo de novo, mas lembrá-lo juntos! E sentir-me preenchido outra vez.

Rasgo o bilhete.
Fecho-me outra vez.
Devagar devagarinho, volto para dentro... já acordei demasiado, vou adormecer outra vez... escurece...

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