sábado, janeiro 17, 2004

A Igreja

O assunto que despoletou com o post do Eskinado é muito complexo e ramificado, mas igualmente muito interessante. É legítima a divergência de opiniões, é legítima também a discussão, é legítima também a dúvida e a ignorância de certas questões.

Indo por partes, começo por pegar no que o Eskinado escreveu; não se acredita em Deus ou num Deus, justificando essa crença pelo empirismo. Simplesmente não tens factos directamente observáveis que possam corroborar a existência ou não de Deus. Ou seja, tu ou acreditas ou não acreditas, baseado única e exclusivamente na Fé. É algo íntimo e intrínseco, que só tu podes sentir se é forte ou não e para que é que te inclina a acreditares (se num Deus bom, se num Deus mau, ou no que fôr). Por outro lado, e agora relacionado com a questão que o Nuno levantou, não é minimamente necessária a união, a "filiação", com qualquer instituição religiosa para acreditares ou adorares ou mesmo que não acredites nem adores, respeitar os ideais de Deus ou de um certo Deus. Pessoas há que toda a sua vida praticaram o mal, sem remorso, sem nexo inclusivé, e nunca se "filiaram" ao satanismo; tens pessoas também que não acreditam em Deus, mas que praticaram o bem ao longo da vida. O importante é o seguir caminhos correctos, é fazer o bem (ou pelo menos tentar), é o ter consciência que somos seres imperfeitos e que muitas vezes erramos mas saber admitir o erro e saber responsabilizar-nos e saber melhorar com isso, independentemente da crença que se tem ou à qual se une.

Tu Eskinado, acreditas que havendo um Deus, teria de ter criado um mundo em que os homens fossem perfeitos, e em que tudo fosse perfeito, porque à mínima incongruência que se surgisse lá estaria Deus para evitar que a irresponsabilidade dos homens causasse danos... essa é a tua visão, talvez um pouco conformista; porque vejamos, a vida, com altos e baixos, é um constante superar de nós próprios, é um constante superar de situações, é o saber enfrentar situações pérfidas e o saber acolher situações de felicidade... normalmente a ideia de que tudo seria melhor se não tivéssemos problemas nenhuns e fosse tudo perfeito e utopias do género, surge quando estamos numa situação complicada, que temos de decidir e resolver (ou simplesmente aceitar, por mais difícil e incompreensível que seja...), quando era tão mais fácil desresponsabilizarmo-nos ou pedir a alguém que o fizesse por nós. Como escreveu o Beyonder "Deus não é uma babysitter contratada para impedir a cada momento que nos magoemos. Deu-nos discernimento para tomarmos as nossas decisões e não podemos culpar a sua falta de intervenção de cada vez que nos magoamos. É que muitas das vezes estava nas nossas mãos termos evitado a mágoa ou depende de nós corrigir a situação. Deus não pode ser uma desculpa para cada um de nós se desresponsabilizar."

O Homem é imperfeito. Erra. Erra quando rouba, erra quando não estuda, erra quando estraga uma amizade, erra quando não arca com as consequências, erra quando não tenta melhorar ou reparar o erro, erra quando, fruto da ganância e outros, leva à destruição da Natureza. Mas o objectivo é o de não errar, o de tentar não errar, o de melhorar sempre, o de ser sempre melhor.

Quando morre alguém, é-nos difícil perceber porquê. Porquê a nós, porquê a eles, porquê?!?! Pressupostamente para um cristão a morte seria mais fácil, pois acredita que há um Paraíso depois da morte; mas a morte dói sempre, e tende a ser ou a parecer-nos inexplicável durante a nossa vida terrena. Porquê o terramoto de Bam? Seriam as pessoas todas más? Não. Claro que não. Até poderiam ser as melhores pessoas do mundo. Mas esse terramoto pode ter acontecido porque o Homem consome o planeta até levar a desequilíbrios ecológicos que levem a que fenómenos desses aconteçam, pode ter acontecido porque o nosso planeta simplesmente "é" assim, pode ter acontecido por milhentas razões que nós nesta fase da nossa evolução e conhecimento não temos sequer a mínima consciência que existem... Queremos respostas? Queremos. Têmo-las? Não. Mas o cristão acredita que depois da morte terá essas respostas, provavelmente impossíveis de explicar durante a existência terrena...

No fim de contas, tem muito a ver com os teus ideais, com as tuas convicções, com o que queres fazer de ti e da tua vida e da dos outros, com o que aquela "vozinha" dentro de ti te diz... a "filiação" ou união a uma religião, sinceramente e no meu ponto de vista, ainda é o menos relevante. Numa altura em que parece que há cada vez mais assassínios, mais roubos, mais corrupção, acho mesmo que o mais importante é as pessoas, independentemente das convicções ou "filiações" religiosas, tomem consciência de que o livre arbítrio que lhes foi dado é para (ou deveria) ser utilizado de forma benéfica e não auto-destrutiva, responsabilizando depois outros...

Um exemplo... ontem magoei um amigo. Provavelmente estraguei uma amizade. Fiz aquilo de propósito? Porque me apeteceu? Não. Isso desresponsabiliza-me de alguma forma? Não também. As minhas convicções dizem-me que mesmo que a situação tenha sido devido fundamentalmente a um culminar de situações que poderiam ter sido evitadas (não por mim, mas pela outra pessoa em questão), que devo ver o que fiz mal e reflectir sobre certos aspectos para que não volte a acontecer. Eu não posso dizer aos outros para mudarem o que erraram (quando muito posso tentar fazê-los ver). Mas posso mudar o que errei. Isto em qualquer situação, seja de que lado fôr e no que fôr, sobre o que fôr! É importante tentar fazer sempre o bem.. mas quando não o conseguires arrependeres-te se for caso disso (o arrependimento tem de ser sincero) e mudar/melhorar. É num Deus assim que eu acredito.

Quanto à questão "simples" do Nuno (essa do "simples" foi brutal oh Nuno) , de simples não tem nada. Antes de mais, e porque todo este texto no fundo é uma opinião pessoal, acho que devo dizer que estou, usando as palavras do Nuno, unido à Igreja. Contudo não estou em acordo com ela em muitas coisas; e no entanto, é a religião que mais se identifica com os meus princípios (também se pode levantar aqui outra questão, será que se o nosso país fosse maioritariamente budista e eu tivesse tido mais contacto com essa religião, será que o cristianismo seria ainda a religião que mais se identificaria com os meus princípios? E teria eu também os mesmos princípios?) e esta minha "união" deve-se quase exclusivamente aos princípios primeiros utópicos de amor e paz e comunhão com o outro, do que propriamente com certas "ramificações" e certos "princípios" criados no decorrer do tempo, a maior parte imperfeitos, porque criados pelo Homem, ainda por cima porque muitas vezes movidos por interesses não espirituais e do bem-estar da sociedade, mas sim por defeitos terrenos. Ao mesmo tempo, estando "por dentro", penso que posso criticar com mais credibilidade e tentar melhorar efectivamente as coisas. Por outro lado cumpro certos rituais, basicamente por questões de Fé, mas estando por dentro compreendo muitas das críticas que vêm de "fora". Porque a Igreja é como tudo na vida, há coisas boas e há coisas más. Isto em relação às celebrações, aos padres, aos bispos, freiras, etc...

Mas não é esse o ponto que quero focar. A questão é que, àparte de convenções como que as mulheres não podem ser padres ou algumas outras que se criaram, há algo que realmente me choca, que é essa riqueza que, como o Nuno disse, a Igreja ostenta, enquanto milhões de pessoas morrem de fome e no limiar da pobreza. Mas uma vez em que estava a reflectir sobre este assunto, tentei explorar ao máximo os dois lados da questão; e houve um argumento no qual eu não tinha pensado até então, que seria o facto de, com o crescimento de tantas seitas que progressivamente vão ganhando mais poder económico,social e político, não seria preciso um estado forte economicamente que pudesse fazer subsistir imensas obras caridosas, que pudesse também ao mesmo tempo ser um símbolo que levasse as pessoas a acreditarem mais (uma religião baseada num andar a cair de podre num bairro social dificilmente terá alguma credibilidade) e que fosse capaz de patrocinar viagens e missões evangélicas. E aí entraria o estado do Vaticano.

Mas, para mim, isto é tudo uma desculpa esfarrapada. A Igreja em muitos aspectos foi corrompida pela cobiça e por interesses instituídos. Por isso é que eu não acredito numa Igreja simbólica e material. Eu acredito é na Igreja que são as pessoas, e neste caso até incluo as crentes e as não-crentes, as pessoas que fazem o que podem para que este mundo seja um local melhor, que lutam para minimizar o sofrimento que prolifera.

Quanto ao que o Nuno escreveu, em relação ao "tomar medidas concretas, activas", não posso concordar totalmente. Porque se por um lado acredito que o ideal seria a repartição de toda aquela riqueza acumulada, nomeadamente no Vaticano, pelos pobres e pelos países subdesenvolvidos, acho que essa seria A medida concreta e A medida activa, não obstante não existirem outros tipos de medidas que são tomados. A Igreja, apesar de tudo, patrocina, organiza, concretiza e responsabiliza-se por inúmeras missões de caridade, nomeadamente nos países subdesenvolvidos onde, independentemente dos objectivos mais nobres ou menos éticos que o senso comum lhes possa atribuir, é a Igreja que constrói poços de água, que constrói escolas e hospitais, muitas vezes sem a mais pequena ajuda de qualquer governo. Por outro lado, lembro-me de uma vez, quando ainda andava no ensino básico, de numa visita de estudo ter visto o testemunho incrível de uma freira que falava com um amor estupendo, que emanava dos poros, dos olhos e em cada palavra que ela proferia. Ela, e as muitas outras que lá estavam, acreditavam tanto no poder da oração que se resignaram a uma vida de clausura, que para nós seria um tormento, mas para elas é uma honra, para poderem passar o dia todo, os dias todos, a rezarem por todos nós. Alguém perguntou, "então mas porque é que passam o dia todo a rezar?" ao que ela respondeu "Se não rezássemos pelo mundo e por todos nós, quem o iria fazer?". Para ela, e para elas, o poder da oração muda efectivamente as coisas. Para as pessoas que não acreditam nisso, a atitude delas é insignificante. Mas para elas, aquela seria a atitude mais activa dentro das capacidades delas que poderiam fazer.

Como tudo, há coisas boas e há coisas más. E como tudo, esta é só uma opinião. Muito bons posts do Nuno e do Eskinado, e grande discussão, ainda mais porque está a ser surpreendentemente correcta. Que assim se mantenha. Ámen ;P

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