sábado, abril 17, 2004

Por isso te conto… (35 anos depois do 17 de Abril de 1969)



Eram tempos diferentes. Imagino mesmo que a um jovem universitário dos dias de hoje possa parecer um tanto estranho o sacrifício, o empenhamento militante e a ilimitada solidariedade dos jovens que viveram e participaram nas lutas do movimento associativo estudantil no longínquo ano de 1969.
Tínhamos então, os mesmos vinte anos que tu tens hoje.
E a nossa coragem -- têm dito e escrito por aí que fomos uma “ geração de coragem” -- não era mais nem diferente da dos jovens de hoje. Sim, eram tempos diferentes.
A liberdade estava ainda com cinco anos de atraso.
O país sangrava numa guerra colonial que matava e estropiava jovens da tua idade.
A liberdade de palavra e de opinião era garrotada pela censura prévia dos jornais ou ponto de partida para a cadeia. Delitos de opinião, dirás. Sim, de facto. Mas assim se proibiam e apreendiam livros, discos, jornais, filmes e peças de teatro.
Os partidos políticos estavam ilegalizados, o direito de manifestação era jugulado pelo autoritarismo fascista e brutalmente reprimido pelas forças policiais.
Por isso te conto…
Em 17 de Abril de 1969 não tivemos alternativa.
Era a dignidade de uma geração e a honra da Associação Académica de Coimbra contra o opróbrio dos serventuários do regime.
De um lado, a cabeça erguida das raparigas e rapazes de 20 anos que lutavam pelo direito de ter voz e usá-la, do outro, a visão canhestra das cabeças baixas vergadas pelo peso do cacete da vergonha. De um lado, a Universidade, alunos e professores numa entrelaçada maioria solidária, do outro o despudor sem norte de um regime entrincheirado na repressão e na mentira.
Por isso te conto…
Coimbra foi uma cidade sitiada durante meses, mas os teus colegas de então transformaram-na no baluarte da resistência juvenil e inundaram-na da alegria criativa que só jovens de vinte anos sabem inventar. A greve às aulas com ocupação das faculdades, a corajosa greve a exames, a prisão de centenas de rapazes e raparigas, o encerramento da universidade e da AAC ou a incorporação compulsiva de 49 dirigentes estudantis nas fileiras do exército colonial, são apenas factos que substanciam o ardor de uma luta juvenil e que pontuam a negro a indómita repressão que se abateu sobre os estudantes de Coimbra.
Era a honra associativa que estava em causa. Optámos por fazer dela bandeira académica, sabíamos das consequências e assumimos a sua inevitabilidade.
Mas disso já te terão contado…
E, provavelmente, também saberás que os sicários do regime autoritário viriam a ter de recuar em toda a linha nas medidas repressivas aplicadas.
A dignidade e a honra estudantis ficaram intocadas. E os estudantes de Coimbra viriam a encontrar nos canos das espingardas do 25 de Abril as mesmas flores que haviam distribuído à população da cidade nos alvores da greve a exames…

Osvaldo Sarmento e Castro (Vice-Presidente da Direcção-Geral AAC, em 1969)

(ici)

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